sexta-feira, março 02, 2007

43) Previdência

Sofismas sobre a reforma da Previdência
Armando Castelar Pinheiro
Valor Econômico, 02/03/2007

Desaparecido nas últimas semanas, o debate sobre como controlar os gastos da Previdência vai voltar, pois sem isso no médio prazo esta ficará inviável. A própria criação de um conselho para discutir o assunto manterá o tema na agenda ainda por vários meses, senão anos. Este artigo chama a atenção para quatro sofismas recorrentes nessa discussão, que se tornará mais profícua se esses forem reconhecidos pelo que são.

Sofisma 1: o déficit da Previdência Social só existe porque o país cresce pouco e a fiscalização das contribuições é falha. Esse argumento desconsidera que o crescimento é baixo, em grande medida, porque a carga tributária é muito elevada, exatamente para viabilizar os altos gastos previdenciários. Entre 1991 e 2006, a receita líquida da União aumentou em 9,7% do PIB; desse total, 15% foram usados para elevar o superávit primário, 46% bancaram o aumento dos benefícios do INSS e 13% cobriram o incremento nos gastos com inativos da União. Nesse ínterim, o investimento da União caiu de 1,2% para 0,7% do PIB. Ou seja, não foi o maior superávit fiscal, mas sim o aumento de 5,8% do PIB das despesas com aposentadorias que gerou o aumento da carga tributária e a queda dos investimentos. Eliminar a sonegação da Previdência, ainda que justo, elevará ainda mais a carga tributária e o desemprego. Sozinha, não é uma solução. É preciso reduzir os gastos com previdência para poder diminuir a carga tributária e a informalidade, e ter mais investimento e crescimento, e não o contrário.

Sofisma 2: não há problema na Previdência Social, pois quando se excluem dos benefícios as despesas com assistência social e se incluem todas as receitas tributárias a ela atribuídas, o déficit contábil desaparece. Excluir as despesas com assistência social das contas do INSS aumenta a transparência e é um passo positivo. Mas "desaparecer" com o déficit remanescente destinando à Previdência outras receitas - como a CPMF, a Cofins e a CSLL - é um passo no sentido oposto, que mascara a existência de déficits atuariais importantes, especialmente na aposentadoria de mulheres e professores(as). Mas a falha maior nesse argumento é ignorar que o problema principal da Previdência não é seu déficit, mas o tamanho dos gastos. O Brasil gasta com previdência e assistência social 12% do PIB, o mesmo que Holanda, Espanha e Reino Unido, países cuja proporção de idosos é o triplo da do Brasil.

-------------------------------
Não foi o maior superávit fiscal, mas, sim, o aumento de 5,8% do PIB das despesas com aposentadorias que gerou o aumento da carga tributária
------------------------------

Sofisma 3: eliminar a indexação do piso previdenciário ao salário mínimo ou estabelecer uma idade mínima para aposentadoria é "jogar milhões de idosos em situação ainda maior de pobreza". Há três equívocos nesse argumento. O primeiro é classificar como "idoso" quem tem entre 45 e 60 anos, caso de muitos aposentados no Brasil. Chamar alguém com 55 anos de idoso pode até ofender. Porém, mesmo depois da instituição do fator previdenciário, 60% das pessoas que se aposentam por tempo de contribuição o fazem com menos de 55 anos. Vários países mais avançados estabeleceram idades mínimas de aposentadoria na faixa de 60 a 67 anos, valendo em alguns deles o mesmo piso para homens e mulheres. Como a expectativa de sobrevida de quem atinge 60 anos no Brasil é quase igual à observada nesses países, se 60 anos for a idade mínima de aposentadoria no INSS, como é para servidores públicos homens (55 anos para mulheres), os brasileiros ainda ficarão mais tempo aposentados que a maioria dos idosos nos países ricos.

O segundo equívoco é defender que o benefício previdenciário acompanhe a remuneração dos trabalhadores na ativa. Como observou Cláudio Dedecca (Valor, 28/02/2007), é importante para o equilíbrio do sistema de previdência que se observe um "padrão de remuneração mais favorável dos trabalhadores presentes no mercado de trabalho, em comparação ao observado para a geração anterior". Idealmente, para a Previdência, a remuneração dos aposentados deve permanecer constante, em termos reais, enquanto a dos trabalhadores na ativa cresce com o aumento da produtividade. Exatamente o oposto tem ocorrido no Brasil, onde o salário mínimo, que reajusta dois em cada três benefícios, aumentou 5,2% ao ano em 1995-2006, contra expansão de 2,4% ao ano para o PIB por trabalhador. Quanto mais o crescimento do número de aposentados superar o do emprego, maior o desequilíbrio daí advindo. E esse hiato vai aumentar: até 2031, o número de brasileiros com 60 anos ou mais subirá 3,7% ao ano, contra 1% ao ano para a população com 18 a 59 anos.

O terceiro erro é afirmar que os idosos vivem na pobreza. De fato, a proporção de idosos pobres é metade da média nacional e pouco mais de um quarto da observada para as crianças. Como essa medida reflete a renda per capita domiciliar, ela já capta a contribuição do benefício recebido pelo idoso para a renda familiar. As crianças é que estão realmente "jogadas na pobreza", não os idosos.

Sofisma 4: reformar a Previdência é privilegiar o ajuste fiscal em detrimento da melhoria dos indicadores sociais. A falha nesse argumento é ignorar que os elevados gastos com previdência e assistência social limitam os recursos disponíveis para saúde, educação, e outros programas de transferência, como o Bolsa Família, que é quatro vezes mais eficiente que a Previdência em transferir renda para as famílias pobres. Entre 2001 e 2005, o gasto social da União aumentou 1,5% do PIB: 1,2% do PIB a mais para a previdência social, mais 0,2% para o Bolsa Família, mais 0,1% para a saúde e nada a mais para a educação. Como proporção do PIB, o gasto público social no Brasil é pouco inferior à média dos países ricos, sendo os gastos com educação muito semelhantes. Ocorre que o Brasil tem uma proporção mais elevada de crianças e jovens, e deveria portanto gastar relativamente mais com educação.

O Brasil tem um sistema de previdência social comparativamente muito generoso, que para ser financiado exige a cobrança de encargos e impostos elevados - estimulando a informalidade e penalizando o investimento - e impede que se faça mais pelas crianças, que recebem uma educação ruim e vivem em grande proporção na pobreza. Precisamos avaliar se estamos fazendo as opções corretas.

Armando Castelar Pinheiro, economista do Ipea e professor do IE-UFRJ, escreve mensalmente às sextas- feiras.

Nenhum comentário: