BC reforçou economia, afirma Bevilaqua
Jornal Valor Econômico, 06/07/2006 - pág. A14
Claudia Safatle e Alex Ribeiro
Afonso Bevilaqua, o mais polêmico integrante da diretoria do Banco Central, é o que mais tempo permanece à frente da diretoria de Política Econômica da instituição desde que essa área passou a cuidar da implementação e gerência do regime de metas para a inflação, em 1999. No dia 2 de julho ele completou três anos no cargo e tem para mostrar um fato inédito: pela primeira vez a inflação, medida pelo IPCA, caminha para um percentual significativamente abaixo do centro da meta, de 4,5%. O último relatório de mercado do Banco Central aponta que as expectativas convergem para uma taxa de 3,98% este ano.
Bevilaqua personificou o que foi considerado por analistas privados e mesmo dentro do governo um excesso de conservadorismo na administração da taxa de juros, pelo Comitê de Política Monetária (Copom). Razão pela qual atraiu toda a sorte de críticas. Uma delas é o país, num severo processo de desinflação, não ter aproveitado das condições excepcionais da economia mundial para crescer mais como outros países emergentes. Outra, é que o a grande responsável pela desinflação foi a apreciação taxa de câmbio e não os juros.
Em entrevista ao Valor, Bevilaqua discorda da tese de que o país perdeu uma grande oportunidade de crescer mais. "Aproveitamos sim as condições favoráveis para aumentar significativamente a capacidade de a economia resistir a choques". Sobre a influência do câmbio, ele relativiza. "Acho que o que promoveu a redução da inflação foi a politica monetária, que atua através de vários canais, inclusive o câmbio."
Valor: As projeções de inflação do BC e do mercado apontam uma expectativa de IPCA abaixo de 4% para este ano. Houve superdosagem de juros?
Afonso Bevilaqua: De jeito nenhum. Se a inflação efetivamente observada no final do ano corresponder às expectativas dos agentes, isso mostrará o amadurecimento do sistema de metas de inflação no Brasil.
Valor: Por quê?
Bevilaqua: Nós nos acostumamos a viver num sistema em que a inflação ficava sempre acima do ponto central da meta e, às vezes, fora do limite superior da meta estabelecida pelo Conselho Monetário Nacional (CMN). Essa não é normalmente a experiência observada em outros países que adotam sistemas de metas. O que se observa é a inflação que, ao longo do tempo, oscila em torno do valor central da meta. Em alguns momentos fica abaixo desse valor central, em alguns momentos fica acima. Só por coincidência a inflação seria a todo momento exatamente o valor central da meta. A idéia é que essa meta de 4,5%, estabelecida para até o final de 2008, funcione como um elemento de atração para a trajetória da inflação.
Valor: As expectativas de mercado para a inflação dos próximos 12 meses vem crescendo sistematicamente. Quais as pressões inflacionárias para 2007?
Bevilaqua: Possivelmente nesse início de 2006 nós estejamos vendo a maior parte dos efeitos das decisões de política monetária que foram tomadas no ano passado e em 2004. Na medida em que você vai avançando no tempo, levando em conta que já houve uma flexibilização da política monetária a partir da reunião de setembro de 2005 do Copom, é natural observar alguma reversão na trajetória de inflação.
Valor: A análise corrente é que em 2006 colheram-se os resultados das políticas cambial e monetária de 2004/2005. Como em 2007 teremos juros mais baixo, a economia reagirá com alguma pressão inflacionária?
Bevilaqua: A trajetória da inflação ao longo do tempo vai depender da evolução da demanda e da oferta agregada na economia. Se a demanda continuar crescendo, sem que isso represente um uso de capacidade instalada maior do que o que está disponível na economia, não há nenhuma razão para que nós observemos pressões significativas de preços ao longo do tempo.
Valor: E se ocorrer o contrário?
Bevilaqua: Caberá à política monetária evitar que isso aconteça. Ela irá coibir eventuais desajustes na trajetória da oferta e da demanda na economia.
Valor: Se a economia chegar no final do ano - hipótese que não parece absurda - crescendo 6% na margem, em meio a um processo de redução dos juros e taxa de câmbio estável, quais os problemas possíveis para 2007?
Bevilaqua: Nos dois cenários que são oferecidos no relatório de inflação, o de referência e o feito com projeções de mercado, vemos em 2007 uma trajetória de inflação consistente com as metas. O desafio é preservar essa trajetória.
Valor: Como o sr. está vendo a velocidade do crescimento econômico em 2006? Está estável, caindo ou se acelerando?
Bevilaqua: O desafio é crescer de forma sustentada ao longo do tempo. Isso não significa que você vai crescer todos os trimestres à mesma taxa. Nos últimos dois trimestres houve aceleração do crescimento na margem. Não é normal você observar trimestre após trimestre a taxa de crescimento se acelerando. Normalmente você vê alguma acomodação ao longo do ano em função da própria dinâmica da economia.
Valor: As notícias que começam a aparecer, de desaceleração do investimento, lhe preocupam?
Bevilaqua: Os dados agregados mostram o contrário. No primeiro trimestre houve uma aceleração do investimento em relação ao trimestre anterior. Do ponto de vista agregado o que há disponível para o segundo trimestre ainda é a informação referente a abril, que não sugere que se tenha interrompido esse processo. Se olharmos para indicadores como absorção de bens de capital, eles mostram que o investimento continua aumentando. Se olharmos para a correlação entre risco-país e o investimento, que é uma correlação que mostra que o risco-país costuma anteceder a trajetória do investimento, o risco-país tem permanecido em níveis bastante baixos nesses últimos trimestres, historicamente baixos. Então não há por que imaginar que o investimento vá deixar de crescer nos próximos trimestres, de forma alguma.
Valor: As preocupações com a situação fiscal têm aumentado. Só na semana passada houve um acréscimo de mais de R$ 10 bilhões no gasto com salários do funcionalismo público. Para quem vai decidir a taxa de juros nos próximos meses e anos, a situação fiscal preocupa ou basta garantir o cumprimento do superávit primário de 4,25% do PIB?
Bevilaqua: Nós temos mencionado nas nossas atas que a nossa hipótese em relação à trajetória das contas públicas é que o governo vai continuar cumprindo as metas de superávit primário de 4,25%. Com essa meta você assegura a sustentabilidade da trajetória da relação dívida/PIB ao longo do tempo, que é uma hipótese fundamental de trabalho. Nos últimos anos o que temos visto é uma redução importante da dívida/PIB, hoje na casa de 50,7% do PIB, e isso sinaliza que a trajetória de superávit que temos visto é compatível com a estabilização e garante a solvência do setor público. Isso é fundamental para que a política monetária possa cumprir o seu papel de estabilização de preços.
Valor: O fato de o setor público estar, como resultado da política fiscal, investindo abaixo do necessário em infra-estrutura, não inviabiliza o aumento do PIB potencial?
Bevilaqua: Temos que observar o que acontece em outros setores da economia, o que acontece com os investimentos privados. O que temos visto é a taxa de investimento em ascensão.
Valor: Ainda no aspecto fiscal, um dos pontos colocados no relatório de inflação é o aumento das transferências de recursos públicos, como os representados pelo aumento do salário mínimo e seu impacto na previdência, ampliação do Bolsa Família, que aumenta a demanda. Isso dificulta a redução de juros?
Bevilaqua: Tem efeito sobre a demanda agregada e esse efeito está mencionado, como você bem o disse, nas últimas atas e no último relatório de inflação. Nesse período mais recente a demanda agregada teve uma contribuição vinda da política fiscal.
Valor: Essa contribuição é bem-vinda, é positiva?
Bevilaqua: É positivo que a economia cresça ao longo do tempo de forma sustentada.
Valor: A contribuição da demanda externa é praticamente neutra e todo o aumento está vindo da demanda interna. Esta tem sido impulsionada sobretudo pelas transferências públicas?
Bevilaqua: Os dados que estão disponíveis não permitem fazer essa inferência. O que temos visto é que tem havido uma recuperação de renda. Em 2006 a massa salarial real cresceu até esse momento 5,8%. Se esse crescimento continuar até o final do ano, esse será o terceiro ano consecutivo de crescimento da massa salarial real. É a primeira vez que isso acontece talvez em uma década.
Valor: Centrar o crescimento na demanda doméstica e, nesta, uma boa parte sendo impulsionada por transferências de recursos do Estado para as pessoas, é uma boa maneira de o país crescer?
Bevilaqua: Acho que você cresce com as características que a economia tem. É melhor crescer assim do que não crescer.
Valor: De 2002 para cá o risco-país caiu de 2.400 pontos para 240. A queda do risco foi muito mais substanciosa do que a queda dos juros reais nesse período. Não deveria haver uma correlação mais direta entre risco e taxa de juros?
Bevilaqua: A taxa de juros em uma economia aberta cumpre dois papéis. Um é o o equilíbrio interno da economia, assegurar a evolução da demanda e da oferta sem pressões inflacionárias significativas. Outro, ela influencia o balanço de pagamentos. Durante muito tempo a restrição efetiva do ponto de vista de taxa de juros domésticas foi o balanço de pagamentos. Nós tínhamos uma taxa de juros que era uma taxa mais elevada do que a taxa de juros que seria necessária para que pudesse ter a economia crescendo com inflação sob controle. Hoje nós temos condições muito mais favoráveis do ponto de vista do balanço de pagamentos. Passamos de déficit em conta corrente expressivo para um período em que nós realizamos superávits em conta correntes e isso possibilitou uma redução importante do endividamento, tanto público quanto privado, fez com que a percepção de risco associado com a economia se reduzisse significativamente. Esse movimento da taxa de risco que você está captando em grande medida reflete essas condições...
Valor: Não se pode transferir os ganhos com a queda no risco para a taxa de juros porque há desequilíbrio entre oferta e demanda?
Bevilaqua: Teve uma redução nos custos de financiamento externos, mas do ponto de vista doméstico a taxa de juros continua a ser calibrada de acordo com as perspectivas de inflação. Numa economia grande como a brasileira, a demanda doméstica é bastante importante para determinar o que acontece com a inflação.
Valor: Por que o Conselho Monetário decidiu manter a meta de 4,5% de inflação para até 2008? Posso entender que a partir de agora, com metas menos ambiciosas, o Copom estará privilegiando o PIB?
Bevilaqua: É fascinante ver você se referir à meta de 4,5% como pouco ambiciosa. Há cerca de um ano gastávamos um bom tempo explicando para as pessoas que a meta de 4,5% não era excessivamente ambiciosa. Isso mostra o amadurecimento do sistema. Mas, não. Você pode entender que a partir de agora deve-se continuar mantendo a inflação na meta. Isso vai fazer com que os custos para a sociedade de ter uma inflação baixa e sob controle sejam cada vez menores. Em 2005 a inflação não ficou em 4,5%, apesar da meta. Em 2006, a julgar pelas expectativas de hoje do mercado, a inflação está se encaminhando para um nível que pode ser até inferior a 4,5%. Em 2007, as expectativas são de que se tenha novamente o cumprimento da meta. Isso vai fazer com que se consiga consolidar a inflação num patamar muito mais baixo do que tivemos nos anos anteriores. São quatro anos seguidos de queda da inflação.
Valor: Criar um histórico de cumprimento de metas é relevante para o regime?
Bevilaqua: Acho fundamental. O regime de metas de inflação funciona como um mecanismo de coordenação de expectativas da sociedade. Para que funcione de maneira eficaz é fundamental que se observe o cumprimento da meta durante um período razoável de tempo.
Valor: Funcionar de forma eficaz significa funcionar com a menor taxa de juros possível?
Bevilaqua: Funcionar com a melhor previsibilidade possível do ponto de vista de inflação. Taxa de juros é sempre consequência. Se aumenta a previsibilidade da economia, se a inflação for sempre compatível com a trajetória das metas, você está reduzindo no significativamente o prêmio nas taxas de juros associado à inflação inesperada.
Valor: De 1994 para cá o país vem vivendo com taxas de juros elevadíssimas. O que falta para o país ter taxas normais?
Bevilaqua: Do ponto de vista da política monetária, continuar ao longo do tempo com a inflação sob controle, baixa e previsível. Se você olhar para as taxas de juros no Brasil na última década vai ver que realmente são elevadas, mas vêm caindo. As taxas de juros de um ano, por exemplo, deflacionadas pela expectativa de inflação de mercado, são hoje quase metade do que foram na segunda metade da década de 1990. Essa queda é resposta à redução da percepção de risco macroeconômico.
Valor: O sr. diria que o país precisa ainda de reformas importantes para viver com taxa de juros real de 5%, 6% ao ano?
Bevilaqua: Acho que antes de nós chegarmos nesse componente das taxas de juros reais temos que explorar bastante qual é a redução que é possível obter simplesmente pela manutenção de um ambiente macroeconômico pouco volátil. A idéia de que temos uma economia onde a inflação é baixa, a trajetória da relação dívida interna/PIB é de queda, o câmbio flutuante funciona como mecanismo de equilíbrio do balanço de pagamentos e com trajetória de crescimento ano após ano. Se o país tiver crescimento de 4% este ano, teremos tido um crescimento médio no período 2004-2006, posterior às nossas crises recentes, em torno de 3,7%. Isso é o dobro do que tivemos no período anterior, que foi marcado por crises substantivas. Ter conseguido dobrar a taxa média de crescimento é algo significativo.
Valor: Mas países semelhantes cresceram mais. Qual o segredo?
Bevilaqua: Acho que temos que olhar o crescimento do Brasil na perspectiva da nossa economia ao longo do tempo. Se você faz considerações levando em conta outras economias, você incorpora nas contas de crescimento mundial de países que estão em estágios completamente diferentes de desenvolvimento. Quando o Brasil tinha um estágio de desenvolvimento semelhante a essas economias que estão agora começando a se expandir a taxas elevadas, o Brasil crescia a taxas muito maiores. Passado esse estágio inicial, o desafio é crescer através da contribuição da produtividade. Isso é mais complicado do que crescer acumulando fatores de produção.
Valor: Não houve, então, oportunidade perdida? O Brasil não perdeu o bonde?
Bevilaqua: Acho que tivemos uma grande oportunidade que foi aproveitada para reduzir a vulnerabilidade da economia, para aumentar a capacidade da economia resistir a choques. Duas coisas aconteceram nos últimos anos. Primeiro, a inflação foi reduzida de forma significativa. Segundo, houve uma melhora expressiva do balanço de pagamentos, acumulação de reservas internacionais, redução do endividamento público e privado, eliminação da dívida cambial. Essas são coisas que você deve fazer aproveitando a oportunidade que é dada pela economia mundial exuberante como nos últimos anos. Aproveitamos sim as condições favoráveis para aumentar significativamente a capacidade de a economia resistir a choques. Até pouco tempo isso era uma suposição. Observando a reação dos nossos ativos durante a volatilidade recente vimos que houve uma diferenciação no comportamento no caso do Brasil e em outras economias emergentes. Em maio, auge da volatilidade externa, nossa relação dívida/PIB caiu, algo totalmente diferente do que se via no passado.
Valor: O sr. acha que isso é uma resposta às críticas feitas ao Banco central por comprar dólares, colocar swaps reversos, enfim, ter centrado na desdolarização?
Bevilaqua: O comportamento durante essa volatilidade atesta a maior capacidade da economia brasileira hoje de resistir a choques externos. Acho que não há dúvida em relação a isso.
Valor: Há uma afirmação frequente de que a queda da inflação decorreu sobretudo do uso do câmbio e que isso causou um desarranjo em vários setores produtivos voltados para a exportação, prejudicou investimentos na economia. Como o sr. vê isso?
Bevilaqua: Acho que o que promoveu a redução da inflação foi a politica monetária, que atua através de vários canais, inclusive o câmbio. Dito isso, acho complicado analisar o que aconteceu com a trajetória da taxa de câmbio no país nos últimos dois a três anos e tentar atribuir isso à política monetária. Se você observar o que aconteceu, por exemplo, em maio de 2004, quando houve uma apreciação significativa da taxa de câmbio nominal que reflete, em boa medida, a resposta da taxa de câmbio real aos desenvolvimentos observados no balanço de pagamentos, incluindo a conta de capital e a melhora na percepção de risco país que houve nesse período. Se você tentar atribuir isso exclusivamente à política monetária, vai ter dificuldades. De setembro de 2005 para cá a taxa de juros Selic já caiu 450 pontos, enquanto no mundo todo você teve elevação de juros, e nossa taxa de câmbio continuou se apreciando. Isso mostra que há outros fatores mais fundamentais associados à melhora da percepção de risco, das condições do balanço de pagamentos, que teve uma contribuição importante para o movimento observado no câmbio.
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