sexta-feira, julho 14, 2006

30) Um debate sobre vacas sagradas: Celso Furtado e Delfim Netto

Em 13 de julho eu "publiquei" -- em meu blog "Diplomatizzando" e depois na lista Diplomatizando (atenção ao número de "zzs") -- uma matéria de jornal, precedida de um comentário sobre o papel de Celso Furtado enquanto "vaca sagrada" de um certo pensamento econômico e nacionalista brasileiro.
Fui retrucado por um comentário de um colega antecedendo a transcrição de artigo do deputado, economista e ex-ministro Delfim Netto, sobre uma suposta "pureza neoliberal" de nossa atual política econômica.
Abaixo transcrevo o fio desse debate, no qual comento sobre as características respectivas de Celso Furtado e de Delfim Netto enquanto "vacas sagradas", na terceira seção deste post, ao final de tudo.

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1) Primeiro meu comentário inicial sobre o mal que as vacas sagradas podem fazer ao pensamento nacional:

"Data: Qui 13 jul 2006 15:24
De: Paulo Roberto de Almeida

Vacas-sagradas são aquelas pessoas que atingiram um tal grau de excelência
em suas áreas respectivas, que elas se tornam verdadeiras referências para o
campo de estudos ou atividades a que elas se dedicam. Viram mitos, pessoas
inatingíveis e inatacáveis e tudo o que elas digam, o que pode eventualmente
incluir coisas anódinas ou até besteiras completas, é acatado com respeito,
repetido na imprensa e aceito com toda a reverência que essas vacas-sagradas
exibem na vida diária."
(meu comentário integral e a matéria de jornal que a suscitou figuram neste link, e a postagem no grupo Diplomatizando tem este outro link: "O mal que uma vaca-sagrada pode fazer: Celso Furtado e o disparate da microeconomia")

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2) Agora o comentário de meu colega da lista Diplomatizando Roberto Ruiz e o artigo do deputado Delfim Netto que ele trouxe ao nosso conhecimento:

"From: Diplomatizando@googlegroups.com On Behalf Of Roberto Ruiz
Sent: Friday, July 14, 2006 10:20 AM
To: Diplomatizando@googlegroups.com
Subject: [Diplomatizando] Falando de Vacas Sagradas: Delfim Neto

Prezados(as)
Delfim afirma “Se insistirmos na 'pureza neoliberal', que entrega os homens à antropofagia mercadista, um dia as urnas trarão alguns 'Morales'” (artigo integral abaixo).
O maior cabo eleitoral do Morales foi o plano do J. Sachs da Univ. Columbia. É mesmo caso da VZ que comentei ontem. Retórica sem resultado por décadas “a casa cai”. Realmente o mundo que nasci acabou: Delfim pedindo amparo estatal aos necessitados no seu estilo “ácido”.
Comentários ....
Roberto Ruiz

A estagbilidade e os Morales
ANTONIO DELFIM NETTO
Folha de São Paulo, 28/06/2006

UM ESPECTRO ameaça a economia brasileira. Não se trata da gripe aviária ou dos programas de transferência de renda do presidente Lula. Trata-se dos conselhos da tribo mais 'pop' da nação dos economistas, os 'divinissimus homines econometrici' _na verdade, 'littérateurs peu divertissants', como diria Thiers. Freqüentemente eles se esquecem, como já informava a 'Encyclopédie' (1751/72), que, em relação às hipóteses, é preciso evitar dois excessos: o primeiro é levá-las muito a sério; o segundo é esquecê-las.
É exatamente por isso que devemos tratar suas afirmações apodícticas -- pretensas necessidades lógicas acima da realidade social e da história -- com alguma generosidade e muita desconfiança.
A generosidade deve ser menor, e a desconfiança maior, quando se trata de proposições ligadas aos 'cientistas' da economia financeira, completamente alienada da realidade do 'chão da fábrica', onde os homens comuns, de carne e osso, procuram realizar-se no seu trabalho. Basta ver a comemoração do 'mercado financeiro' quando recebe a notícia de que o desemprego aumentou...
Nesta 'ciência', falta uma hipótese: o povo, que, com a existência do 'sufrágio universal', se manifesta periodicamente nas urnas e corrige os excessos cometidos pela política econômica inspirada na última moda 'neoliberal'. Há 12 anos estamos vivendo uma 'estagbilidade'; uma importante estagnação com uma precária estabilidade. Não há como continuar a dizer ao cidadão sofrido e em estado de necessidade que 'tenha paciência, porque, no devido tempo, o mercado vai atendê-lo!'.
É preciso entender que a recusa do cidadão tem razão mais profunda do que a simples fadiga da espera. À custa de sofrer, ele acaba incorporando a percepção de que não tem o poder e a capacidade de cuidar de si mesmo, que sua situação é resultado das forças cegas do 'mercado', que, de fato, ele pertence ao 'mercado'! É aqui que, pelo 'sufrágio universal', as urnas trazem os 'Morales', produto do esgotamento da paciência dos bolivianos, que esperaram 20 anos pelos benefícios prometidos pela estabilização neoliberal 'bem-sucedida'.
No Brasil, temos de cuidar do crescimento do PIB e do emprego, mas também da instituição de redes de amparo aos mais necessitados, sem descuidar do equilíbrio fiscal. Se insistirmos na 'pureza neoliberal', que entrega os homens à antropofagia mercadista, um dia as urnas trarão alguns 'Morales' que já nos espreitam atrás da esquina...
ANTONIO DELFIM NETTO escreve às quartas-feiras nesta coluna.
dep.delfimnetto@camara.gov.br"

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3) Agora meus novos comentários sobre o papel das vacas sagradas no contexto societal e no Brasil em particular, colocados na lista Diplomatizando (não confundir com meu blog com dois zzs).

Novos comentários de Paulo Roberto de Almeida, em 14 de julho de 2006 (jour de la République française, de la prise de la Bastille, outra vaca sagrada, mas histórica):

Creio que, efetivamente, o deputado e ex-ministro Delfim Netto pode ser classificado como uma "vaca sagrada", no sentido em que o seu mito pode já ser maior do que sua importância real para a economia brasileira atualmente.
Finalmente, ele é hoje "apenas" -- mas esse apenas é um GRANDE apenas -- um comentarista, mas muito atilado, da conjuntura econômica, um grande estudioso das tendências econômicas, nacionais e internacionais, um devorador de relatórios econômicos, de estatísticas e de livros de economia, com uma grande cultura clássica e é um frasista insuperável, não tão grande quanto foi Roberto Campos, mas quase tão excelente nessa arte difícil (que é a de resumir numa frase irônica uma evidência de senso comum e transformá-la em produto do puro espírito).
Mas ele certamente é uma "vaca sagrada" muito diferente de Celso Furtado. Este foi mais um acadêmico do que um homem prático, mais um cultivador de idéias do que um formulador de políticas, mais um historiador da cultura econômica do que um propositor de políticas econômicas (embora tenha tido, também, o seu curto período de glórias, que começou e se encerrou, melancolicamente, com o Plano Trienal, sabotado pelo próprio presidente João Goulart). Celso Furtado encantou e ainda encanta -- apenas porque os acadêmicos de hoje são preguiçosos e produzem poucas sínteses interpretativas realmente satisfatórias -- gerações de universitários brasileiros pela sua interpretação inovadora (50 anos atrás) da história econômica brasileira, numa leitura keynesiana e prebischiana.
Como Celso Furtado protestava intelectualmente contra a miséria e o subdesenvolvimento -- mas na verdade fez muito pouco, na teoria econômica e na economia política prática para superá-lo --, ele ficou como referência de luta por um "projeto nacional de desenvolvimento", sem dependência do estrangeiro e com distribuição dos benefícios sociais do crescimento econômico. Mas, indignação moral nunca foi sinônimo de eficácia teórica e prática e por isso Celso Furtado pouco se qualificaria, efetivamente, para um prêmio Nobel, como por exemplo Gunnar Myrdal, um outro equivocado fundamental -- no Asian Drama, por exemplo - mas que teve sucesso de público -- succès d'estime, como diriam os franceses e o qualificou para o prêmio Nobel (1974, dividido, para horror deste, com Friedrich Hayek).
Celso Furtado se equivocou várias vezes: com a marcha do capitalismo global e periférico, com o papel das multinacionais, com os instrumentos de política macroeconômica -- ele continuava, por exemplo, tragicamente apoiando, até o final da vida, um "pouquinho" de inflação para estimular o crescimento e o emprego, esquecendo da parábola da gravidez (e a de que não existe um pouquinho de gravidez) e do terrível mal que a inflação apresenta do ponto de vista distributivo -- e também com o seu "estatismo" instintivo, o que o fez apoiar várias idéias e propostas que redundaram nesse monstro metafísico que temos hoje e que se chama "Estado brasileiro", um ogre devorador de rendas e poupanças do setor privado em seu próprio benefício.
Já o Delfim Netto é uma vaca sagrada de uma outra espécie: eminentemente prático, quase nada ideológico -- um pouco, ao achar, também, que os Estados conseguem "controlar" e "redirecionar" os mercados --, um grande administrador e organizador de políticas práticas, sem qualquer sentido de devoção a doutrinas e escolas consagradas (o que realmente não serve para nada) e fundamentalmente um "conselheiro do príncipe", quando não é ele mesmo um "controlador" de príncipes incautos (como era o Figueiredo, um inculto em economia).
Hoje ele continua um "conselheiro do príncipe", influenciando indiretamente a economia brasileira com seus conselhos de bom senso e cautela (com um pouco de caldo de galinha, que é feito justamente de suas frases ferinas e divertidas), ainda que ele gostaria, eventualmente, de ser novamente entronizado como o "único" conselheiro do príncipe oficial (o que ele ainda pode vir a ser, mas não se sabe bem em qual governo, pode ser o do PMDB-PT de 2007-2010, nessa ordem).
Finalmente venho ao trecho selecionado pelo Roberto. Não acredito, absolutamente, que estejamos cultivando o neoliberalismo no Brasil, certamente não com um governo que intervém a cada hora na economia e continua a redistribuir benesses privadas com os recursos públicos, que o Estado arranca impiedosamente de empresas e particulares.
Que a maioria dos eleitores sejam analfabetos políticos e incultos econômicos, incapazes de compreenderem os meandros da economia e por isso mesmo seduzíveis por candidatos a Morales brasileiros -- haja visto o sucesso de um Garotinho e de um Enéas -- isso eu concordo totalmente. Mas que estejamos em uma "pureza neoliberal", isso eu acho totalmente errado, e o deputado Delfim Netto só diz isso para "épater le bourgeois bien pensant", aquele que justamente lê as suas colunas e teria vergonha de se identificar com o neoliberalismo, pois o pensamento esquerdista já conseguiu convencer a sociedade que se trata de algo malévolo, negativo para o país e que precisa ser afastado do círculo das possibilidades de políticas práticas pela intervenção acrescida do Estado, que sempre procura "corrigir" os mercados.
Nessa campanha o Delfim contribui, mesmo não sendo um esquerdista ignaro, como é a maioria dos que se levantam contra algo inexistente no Brasil -- que seria o liberalismo econômico --, emprestando sua credibilidade a um protesto absolutamente surrealista: combater algo que não existe.
Nisso ele faz obra negativa. Sua condição de vaca sagrada o habilita, no entanto, a ser ouvido. Acho pena, pois ele teria imensas contribuições a dar à correção dos desequilíbrios macroeconômicos no Brasil - e de certa forma ela ainda o faz, ao propor, por exemplo, o déficit nominal zero -- em lugar de escrever essas pérolas do espírito que são suas colunas semanais em dois ou três jornais brasileiros.
Vacas sagradas servem para isso mesmo...
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Paulo Roberto de Almeida
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Grupo: http://groups.google.com/group/Diplomatizando

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