Editorial (Carta do IBRE) da revista Conjuntura Econômica, de junho de 2006:
Brasil: a difícil tarefa de crescer com eqüidade
Qualquer brasileiro que acompanhe minimamente as questões nacionais sabe que o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo. Este é um tema que está há décadas na agenda política do país, e que já produzia acalorados debates nos meios acadêmicos antes mesmo da redemocratização. Ao longo dos últimos anos, dados da Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios (Pnad) vêm mostrando uma animadora, se bem que moderada, tendência de melhora na distribuição de renda. Este avanço é merecidamente comemorado pelo governo e pela sociedade, mas não obscurece o fato de que ainda permanecemos uma sociedade vergonhosamente desigual.
Nos tempos do milagre econômico do regime militar, havia uma razoável aceitação da teoria discutível de que "é preciso primeiro que o bolo cresça, para depois distribuir". Hoje, é impensável para qualquer tendência política defender uma tese daquele tipo, e esta mudança de mentalidade constitui, indiscutivelmente, uma mudança positiva para o Brasil. Esta Carta procurará indicar, porém, que a relação entre eqüidade e crescimento econômico é muito mais complicada do que as simplificações do discurso político muitas vezes parecem sugerir, e que o Brasil enfrenta hoje um sério problema nesta questão.
Na verdade, é possível crescer reduzindo a desigualdade, mas as evidências teóricas e empíricas mostram que não é qualquer caminho de redistribuição de renda que viabiliza o desenvolvimento econômico de uma nação. Trabalhos de economia política indicam que o nível de eqüidade de uma sociedade é determinado por interações muito complexas entre diversos fatores econômicos e sociais. Uma questão fundamental, por exemplo, são os diferenciais de produtividade entre os trabalhadores e na estrutura de postos de trabalho - ambos ligados, em larga medida, às escolhas tecnológicas das empresas, em um processo de causalidade mútua.
Alguns achados muito importantes para se compreender a relação entre eqüidade e crescimento podem ser encontrados no trabalho "Desigualdade, Tecnologia e o Contrato Social", do economista francês Roland Bénabou.(1) Tentaremos apresentar aqui, de forma muito simplificada, algumas das conclusões mais relevantes deste estudo. Bénabou sugere, por exemplo, que o grau de distributivismo da política fiscal de um país, escolhido pelos eleitores, é alto em sociedades muito igualitárias, vai se reduzindo à medida que piora a distribuição de renda, e volta a crescer quando a desigualdade assume proporções muito intensas.
A razão pela qual sociedades igualitárias tendem a ter alta carga tributária e pesados gastos sociais é que uma população homogênea em termos de preparo educacional e de capacidade produtiva costuma encarar os impostos e as despesas públicas quase como um sistema de seguro, que ampara os que têm a infelicidade de incorrer em contingências muito desfavoráveis. Nestes países, portanto, o igualitarismo da estrutura socioeconômica tende a ser mantido e reforçado pela mediação do Estado. É muito importante notar, porém, que não há propriamente uma ação redistributiva do sistema de tributos e gastos públicos, já que não se trata de uma transferência maciça dos mais ricos para os mais pobres - o grosso das transferências ocorre entre pessoas de perfil socioeconômico relativamente próximo, segundo a lógica "seguradora" anteriormente mencionada.
Em sociedades mais desiguais, os grupos de alta renda sentem que pagam mais impostos do que o valor dos bens públicos que consomem. Eles também são os mais capacitados a influenciar as decisões do sistema político, no sentido de evitar o distributivismo fiscal. Desta forma, os mais ricos opõem-se com sucesso a aumentos da carga tributária para financiar a expansão do "welfare state", o que tende a perpetuar a desigualdade. Nesta linha, um trabalho de Bartels (2), de 2002, reforça este entendimento ao observar que quanto mais ricos são os eleitores, mais os votos dos senadores americanos atendem a seus interesses. Uma terceira situação é a que ocorre quando a distribuição de renda atinge níveis dramaticamente injustos. Nestes casos a massa dos que são favoráveis à redistribuição engrossa tanto que pode se tornar politicamente mais forte que a dos ricos. A tendência, portanto, é de aumento da carga tributária para financiar serviços e programas que transfiram renda dos mais ricos para os mais pobres.
Influenciando decisões - Em seu artigo, Bénabou investigou também os diferentes impactos que a ação redistributiva via impostos/gastos públicos pode ter. Os efeitos negativos característicos da tributação altamente progressiva são, basicamente, de duas naturezas: as distorções geradas na oferta de trabalho, através da geração de incentivos perversos aos trabalhadores mais produtivos; e o desestímulo à acumulação de capital. Por outro lado, as políticas redistributivas podem ser um fator positivo para o crescimento, ao permitir que famílias anteriormente sem acesso ao crédito façam investimentos no seu próprio capital humano.
Por conta disso, tendo-se em mente o crescimento de longo prazo da economia, a questão é saber se as perdas de crescimento geradas pelas distorções na oferta de trabalho e na acumulação de capital são compensadas pela expansão do acesso ao crédito. Para responder a esta pergunta, é preciso notar, de início, que a única conseqüência pró-crescimento da distribuição acontece pelo canal do capital humano, ou, basicamente, da educação. Isto deixa claro que uma política redistributiva será tão mais apta a promover o crescimento quanto mais esteja centrada na equalização das oportunidades educacionais. Alguns estudos da evidência empírica, de Fernandez e Rogerson (3), de Sheshadri e Yuki (4), e de Bénabou (5) sugerem que o produto de longo prazo pode ser elevado pela redistribuição, o que indica que o impacto da restrição de crédito na formação de capital humano é muito significativo.
O trabalho de Bénabou é um excelente mapa para se entender o que vem acontecendo no Brasil atual em termos da interação entre distribuição de renda e crescimento. Para fazer esta análise, entretanto, é útil olhar primeiro alguns dados que mostram, de forma inequívoca, a melhora na distribuição de renda ao longo dos últimos anos. O índice de Gini (que mede a desigualdade, variando de 0 a 1, e piorando à medida que se aproxima de 1) dos rendimentos familiares per capita no Brasil caiu de 0,597, em 2001, para 0,574, em 2004. Em 1989, o Gini atingiu um pico de 0,637.
Mas existem várias outras indicações de como a vida dos mais pobres melhorou no Brasil, relativamente à dos mais ricos. Em dezembro de 1994, com um salário mínimo comprava-se 0,6 cesta básica, com o valor do salário mínimo de hoje consegue-se adquirir 1,7 cesta básica. Na verdade, o salário mínimo cresceu substancialmente, desde meados da década passada, tanto em termos reais (medido pelo IPC), quanto em dólares. Deflacionado pelo valor do salário mínimo, o frango caiu 57,1%, o arroz 47,4%, o leite e o feijão mais de 30% e o pão francês 25%, de 1995 até o início de 2006. No mesmo período, tomando-se também o valor do salário mínimo como deflator, o preço de uma televisão caiu em 80%, e o do cimento em 35%. De 2000 até hoje, pelo mesmo parâmetro, o valor dos celulares reduziu-se a 14% do que era.
No período de março de 2005 até fevereiro de 2006, as regiões com maior crescimento das vendas de comércio eram o Norte e o Nordeste, exatamente as mais pobres do país. No Nordeste, a expansão foi de 15%, o triplo da brasileira. E as regiões com pior desempenho, naquele período, foram as mais ricas, o Sudeste e o Sul (com recuo de 1%). Este resultado, que claramente indica tendências redistributivas funcionando na economia brasileira, provavelmente deve-se em boa parte ao formidável aumento dos programas de transferência de renda - 8,8 milhões de domicílios recebiam o Bolsa-Família em março de 2006 -, do programa de crédito consignado na folha de pagamentos e do salário mínimo real que vem aumentando desde 1994. Da mesma forma, entre março de 2004 e março de 2006, o rendimento médio real das regiões metropolitanas de Recife e Salvador cresceu 5,4%, comparado com 2,5% em São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte.
A melhora da distribuição de renda no Brasil é uma boa notícia, mas é certo que não estamos naquele ponto ótimo correspondente a sociedades igualitárias com alta tributação e grande gasto público, nas quais o eleitorado apóia a ação de um Estado pesado que funciona mais como um segurador do que como um agente de redistribuição. A situação brasileira parece ser muito mais o terceiro caso mencionado anteriormente - um país onde a desigualdade é tão clamorosa que mesmo a tradicional prevalência dos interesses dos mais ricos não consegue mais impedir que o Estado leve a cabo políticas redistributivas baseadas na alta taxação e no aumento dos gastos públicos.
O problema, porém, é que os fatores negativos da redistribuição sobre o crescimento tendem a ser tão maiores quanto maior for a desigualdade. Isto nos leva a concluir que, em uma sociedade como a brasileira, em que os mais ricos simplesmente não utilizam a estrutura pública de ensino básico e saúde, e evidentemente têm uma péssima avaliação da qualidade de outros bens públicos como segurança ou estradas de rodagem, o desestímulo oriundo da taxação sobre a ocupação dos mais produtivos e sobre a acumulação de capital deve ser grande.
Entraves para crescer - Outro entrave ao crescimento da fórmula brasileira de redistribuição é o fato de que ela se deve em boa parte a pesadas transferências de renda que apenas acessoriamente, no caso do Bolsa-Família, estão bem focalizadas nos mais pobres e ligadas à redução da desigualdade educacional. Mesmo com um aumento da carga tributária de cerca de dez pontos percentuais do PIB em uma década e meia, a expansão dos gastos previdenciários e os programas de transferência acabaram por comprimir os investimentos do governo, que nos últimos três anos atingiram a menor média, como proporção do PIB, do pós-guerra.
Alguns comentaristas apontam os altos juros reais da dívida pública como o grande vilão do desajuste das contas públicas no Brasil e do baixo investimento público. O custo fiscal dos juros, porém, está hoje entre 4% e 5% do PIB, quando se faz o devido desconto da correção monetária da dívida pública. No entanto, se os juros reais brasileiros caíssem para o nível do dos países desenvolvidos a carga fiscal reduzir-se-ia em dois ou três pontos percentuais, uma economia pequena para um país com gastos públicos da ordem de 40% do PIB. Na verdade, três anos de crescimento do gasto público ao ritmo do ocorrido no governo Lula consumiria a economia de se derrubar os juros reais sobre a dívida pública de 10% para 6%.
Nos últimos 20 anos, que abarcam boa parte do período de restauração democrática, a economia brasileira cresceu ao medíocre ritmo de 2,4% ao ano. Muitas são as causas apontadas para explicar este cenário, e a mensagem que esta Carta procura passar é a de que a própria redução da desigualdade, da forma como tem sido realizada, tornou-se um importante entrave ao crescimento econômico do Brasil. Da maneira como o país vem reduzindo a sua desigualdade, a velha oposição entre crescer ou distribuir renda tornou-se de novo verdadeira. O professor Edward Amadeo discorre, em seu artigo publicado no jornal "Valor Econômico" (6), sobre a opção do governo Lula pela estabilidade monetária e a distribuição de renda.
A única forma de sairmos desta armadilha, e o país voltar a crescer, preservando e aprofundando as conquistas em termos de distribuição de renda, é a de dar um choque de gestão no setor público. Com a conhecida ineficiência do funcionamento do governo no Brasil, há amplo espaço para reduzir despesas públicas sem cortar investimentos nem reduzir de forma "injusta" os benefícios sociais. Com a economia obtida pela diminuição do gasto, o Brasil pode combinar redução da carga tributária e aumento do investimento público, ambas as medidas estimuladoras do crescimento econômico. Mais crescimento, por sua vez, permitirá não só dar continuidade à recuperação do investimento do governo, mas também aumentar os investimentos sociais a um ritmo um pouco abaixo da expansão do PIB, e com forte enfoque na redução da desigualdade educacional. Esta seria, portanto, a receita para superar o infeliz dilema que, desde o regime militar, atormenta os formuladores de políticas econômicas e sociais no Brasil. É possível fazer o bolo crescer e distribuí-lo ao mesmo tempo, mas para isto é preciso rever de forma radical a atuação do Estado no Brasil.
1 Bénabou, R. (2005), "Inequality, Technology and the Social Contract", em Handbook of Economic Growth, editado por Philippe Aghion e Steven N. Durlauf (North-Holland), volume 1B, 1595-1638.
2 Bartels, L. (2002), "Economic Inequality and Political Representation", Princeton University mimeo.
3 Fernandez, R. e Rogerson, R. (1998), "Public Education and the Dynamics of Income Distribution: A Quantitative Evaluation of Education Finance Reform". American Economic Review, número 88.
4 Sheshadri, A. e Yuki, K. (2000), " Equity and Efficiency Effects of Redistributive Policies", Rochester University mimeo.
5 Bénabou, R. (2002), "Tax and Education Policy in Heterogeneous Agent Economy: What Levels of Redistribution Maximize Growth and Efficiency?, Econometrica, número 70.
6 Amadeo, Edward (17/05/2006), "Estabilidade e a popularidade de Lula".
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